segunda-feira, 17 de março de 2014

Os miseráveis (trabalhadores dos EUA)


“Miséria à americana: vivendo de subempregos nos Estados Unidos” nos conta como vive a massa trabalhadora dos EUA.  A escritora com PhD em biologia começou a se questionar como os pobres conseguem fechar as contas? Como é possível viver com um salário de garçonete?
É interessante lembrar que isso já passou pela minha cabeça, trabalhar de garçonete nos EUA, aprender inglês, ter uma experiência e ganhar alguns trocados. Afinal, quem teria medo de trabalhar na potência norte americana? Certamente, na minha cabeça adolescente seria uma tarefa muito fácil!
Pois bem, B. Ehrenreich fez isso. Deixou sua casa, seu carro, seu marido para “se fazer de pobre”, foi apenas com um capital inicial de 2 mil dólares (ou quase isso), e foi viver três meses um em cada estado diferente. Se permitiu em todos os empregos alugar um carro velho, e se recusou a morar nele, esses seriam seus “luxos”. Segue um trecho conclusivo:


“Quando o desemprego provoca pobreza, sabemos como expor o problema – tipicamente, “a economia não está crescendo com suficiente rapidez” – e sabemos qual é a solução liberal tradicional – “pleno emprego”. Mas quando temos emprego pleno ou quase pleno, quando há empregos disponíveis para quem quer que os procure e possa chegar até eles, o problema se aprofunda e começa a atingir a rede de expectativas que forma o “contrato social”. Segundo uma recente pesquisa de opinião realizada pela Jobs for the Future [...] 94% dos americanos acreditam que “quem trabalha em horário integral deveria ganhar o suficiente para manter sua família fora da pobreza”. Cresci ouvindo repetidas vezes, a ponto de causar tédio, que o “trabalho duro” era o segredo do sucesso: “Trabalhe duro e você vai em frente”, ou “É o trabalho duro que nos trouxe até onde estamos”. Ninguém jamais disse que seria possível trabalhar duro – mais ainda do que jamais se pensou possível – e ainda assim ver-se afundando cada vez mais na pobreza e nas dívidas.
Quando mães solteiras pobres tinham a opção de permanecer fora da força de trabalho recebendo pensão do governo (poderíamos comparar com o Bolsa Família?!), as classes média e alta tendiam a vê-las com certa impaciência, para não dizer nojo. Os pobres que dependiam da previdência eram atacados por sua preguiça, sua teimosia de se reproduzirem em circunstancias desfavoráveis, seus supostos vícios e, acima de tudo, por sua “dependência”. Ali estavam, contentes de viver de “presentes do governo” em vez de procurar a “autossuficiência”, como todo mundo, por meio de um emprego. Precisavam ajeitar as coisas, aprender a dar a corda no despertador, sair de casa e ir trabalhar. Mas agora que o governo acabou com a maior parte de seus “presentes”, agora que a maioria avassaladora dos pobres saiu e está labutando na Wal-Mart ou no Mac Donald’s – bem, o que vamos sentir por eles? Desaprovação e condescendência não servem mais, então que sentimento fará sentido?
Culpa, você deve estar pensando, cauteloso. Não é o que deveríamos estar sentindo? Mas a culpa não leva a lugar algum; a emoção apropriada é vergonha – vergonha de nossa própria dependência que, neste caso, é do trabalho mal pago de outras pessoas. Quando alguém trabalha por menos do que precisa para viver – quando por exemplo, passa fome para que você possa comer mais barato e com maior conforto – essa pessoa faz um grande sacrifício por você, deu-lhe de “presente” uma parte de seu talento, de sua saúde e de sua vida. Os “pobres trabalhadores”, como com aprovação os chamam, na verdade são os maiores filantropos de nossa sociedade. Negligenciam os próprios filhos para que os filhos de outros sejam bem cuidados; vivem em habitações péssimas para que outros lares fiquem brilhantes e perfeitos; suportam privações para que a inflação seja baixa e o preço das ações, alto. Ser um pobre trabalhador é ser um doador anônimo, um benfeitor sem nome, para todas as outras pessoas.
Algum dia, é claro – e não vou fazer previsões sobre quando, exatamente – eles estão destinados a se cansar de receber tão pouco em troca e exigir que sejam pagos pelo que valem. Haverá muita raiva quando este dia chegar, e greves e destruição. Mas o céu não vai cair e no final estaremos todos em melhor situação.”

A autora iniciou sua "pesquisa" na Florida, onde tentou por 2 vezes trabalhar de arrumadeira em hotéis, mas acabava sempre sendo enviada para atuar como garçonete, devido sua tez e sotaque “apresentáveis”. Quando as contas insistiram em não fechar e ela não via mais como economizar, tentou trabalhar em 2 lugares simultaneamente e conseguiu trabalhar de arrumadeira. 
No Maine trabalhou numa agência de faxineiras. A agência recebia 25 dólares por hora, enquanto as faxineiras 6,65. Para tentar fechar as contas,  trabalhava num asilo durante os finais de semana.
Em Minnesota, foi impossível encontrar moradia, como ela diz quando ricos e pobres competem por espaço, os últimos levam a pior. Teve que passar um tempo num hotel muito simples, sem cozinha, nem trava na porta, nem ventilador. Aqui descreve um pouco sobre as maravilhas de se trabalhar no Wal-Mart, uma empresa francamente assustadora. Quando, por ter passado o tempo combinado em seu hotel horroroso ela precisa mudar e fica temporariamente em outro até achar uma moradia adequada, passa a pagar muito caro para trabalhar, e o projeto precisa acabar antes do tempo, com essa triste conclusão: “não é preciso um diploma em economia para ver que os salários são baixos demais e os alugueis altos demais [...]muita gente ganha muito menos do que precisa para continuar vivendo”.
Quanto mais pobre se é mais pobre tende a se ficar, sem a possibilidade do capital inicial para arranjar moradia menos ruins (que exigem um antecipado), acaba-se aceitando locais mais caros e mais longes do local de trabalho e sem cozinha para preparo da alimentação. Tendo que gastar ainda mais (dinheiro, tempo e energia) no transporte, alimentação e moradia.
No inicio Barbara se preocupava em como conseguiria esconder seu PhD em biologia, mas o fato é que não foi notada grande diferença entre ela e suas colegas que mal conseguiram terminar um ensino fundamental fraco.  Os trabalhos eram mecânicos e fisicamente desgastantes. Podemos desperdiçar ao longo de gerações grandes mentes, poetas, artistas, físicos, inventores, sem nem nos darmos conta... E quando não há espaço ou incentivo para criatividade ou inovação "todos os gatos são pardos", e todos erguem igualmente um aspirador de quase 5 Kg nas costas...
Sempre havia um gerente para reprimir qualquer possível “roubo de tempo”, ao longo das 8 horas de serviço, tirando as pausas de 15 minutos, não se pode sentar, comer, beber água, conversar, ou ir ao banheiro.  O custo de manter essa repressão (salario de gerente, câmeras), bem como os exames antidrogas (quando a empresa fornece) é certamente uma pressão ainda maior pra manter os salários baixos.
Existe forte pressão contra qualquer possibilidade de revolta, o Wal-Mart apresentava cartazes contra a "maldade" do sindicato. Dificultava-se ao máximo qualquer contato entre os funcionários. Somado ao esforço em fazer os funcionários se sentirem suficientemente desvalorizados para acreditarem que o quanto ganham é o quanto merecem, e não se rebelarem jamais, o que não é muito difícil, pois mesmo testes com animais revelam que macacos e ratos “forçados a um estado de subordinação em seus sistemas sociais adaptam em conformidade a química de seu cérebro, tornando-se “deprimidos”.
Além de não terem acesso a planos de saúde ou a um sistema público eficiente, é comum o trabalho pesado e repetitivo causar lesões a longo prazo, as dores incentivarem o consumo de analgésicos (baratos de qualidade duvidosa), com os baixos salários a alimentação se restringi a itens baratos, ou cestas de auxílio, sem vegetais ou frutas frescas, mas cheios de gordura e açúcar (o que me leva crer que os que não sentem fome estão subnutridos), e bairros e moradias mais acessíveis são comumente insalubres. O pobres trocam por míseros salários, não apenas seu tempo, como sua saúde. Para que possamos ter o prazer de poder comprar roupas baratíssimas na renner, tirar peças de arara e cabide e deixar por aí, ou provar e simplesmente abandoná-las no provador, acreditando que a fada madrinha se encarregue de magicamente por tudo em ordem na nossa ausência.
Dois pontos me deixaram um pouco assustada. Um é ver a grande nação, o Império dos EUA, como um país pobre, mas coberto com uma espessa camada de maquiagem.
E segundo, como nós classe média (que sim, também não estamos bem como deveríamos) exploramos diariamente de um modo cruel e desumano milhares de trabalhadores miseráveis. Cada cafezinho que vc toma para aumentar seu rendimento, teve mãos miseráveis no transporte dos grãos, no plantio, na colheita, na aplicação dos produtos químicos, para fazer o café, para lavar a xícara, e você mal olha nos olhos de quem lhe atende. Semana passada fui na renner, precisava comprar um top, peguei 2 fui ao provador no andar de baixo, na saída pedi para a moça "eu posso guardar esse aqui", ela pareceu extasiadamente feliz "jura? muito obrigada!", a arara de devoluções estava gigante. Não doeu colocar um top no cabide e devolver para arara que eu tinha tirado. Aliás, achei isso de um anarquismo extremo. E hoje, buscando o carro de uma manutenção, fui pegar um cafezinho, era tão arrumadinho, desconfiei "posso pegar um?" perguntei para senhora encarregada de lavar as xícaras "claro". Tinha tantas opções... "qual a senhora mais gosta?" ela me olhou, talvez achando tudo aquilo muito inusitado "eu não sei, os funcionários não podem tomar". Fazia tempo que não me sentia tão sem graça, não consegui fazer nada além de engolir um capucino e sair correndo desconcertada... 

Um comentário:

  1. A eterna competição desigual das classes. Sempre haverá uma desculpa para não se fazer distribuição de oportunidades.

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